O NATAL E A SOLIDARIEDADE



António Gedeão, num dos seus poemas mais irónicos e mordazes, referiu-se ao Natal como “O dia de ser bom /(…) dia de pensar nos outros – coitadinhos – os que padecem / de lhes darmos coragem para continuar a aceitar a sua miséria”.

Lembrei-me muitas vezes deste poema nos últimos dias, em que quase todas as reportagens jornalísticas nos brindavam com sessões de solidariedade, como se houvesse um concurso para premiar a instituição mais solidária, a família mais solidária, a figura pública mais solidária. 
A ceia solidária X, os não sei quantos sem-abrigo que foram jantar à Associação Y (e lá aparece o presidente benemérito, ufano da sua caridadezinha de calendário). Como se sentirão aquelas pessoas que foram objeto dessa solidariedade, ao verem-se transformadas numa espécie de atração de natal, pousando para a foto do outro como coitadinho?

Claro que o Natal apela aos sentimentos mais nobres em quase todos nós, mas por que é que eles desaparecem logo de seguida? Por que é que estas pessoas têm necessidade de se autopromover? Por que é que estas ações não se multiplicam pelo resto do ano, ou melhor, por que é que elas são ainda tão necessários?

A solidariedade é um ato de contrição social! Não mais do que isso. É o reconhecimento de que, de algum modo, falhámos e procuramos, agora, remediar a situação. Não fomos nós, foi o outro? Isso pouco interessa; como grupo, falhámos!

A solidariedade não é um selfie de Natal para colocar nas redes sociais. Há imenso solidariedade por fazer ao nível dos afetos e outra tanta por fazer e calar. 
Temo que um dia destes, algum repórter mais insensível cometa a loucura de perguntar a um sem-abrigo algo do género: “Então, gostou da ação solidária da …..? Que nota lhe dá?”. Já faltou menos.

No Natal há solidariedade; é natural que haja mais predisposição a isso, mas não é natural que que ela se transforme num desfile de vaidades.

Gabriel Vilas Boas